ENTREVISTA/AMARAL VIEIRA
Por Marco Vieira
“A música quando é nutritiva alimenta a alma”
Por conta de muita persistência e talento de sobra, pianista conta como se tornou um dos maiores músicos brasileiros
Atraído por uma melodia que saía de uma saletinha lá se foi o menino de 8 anos à procura da fonte musical. Fascinado com o escorregar dos dedos sobre as teclas ouviu a seguinte proposta feita pela irmã: “Eu estudo 5 minutos e você estuda 55 no meu lugar”. Bendita proposta. O menino, agora com 55 anos, já compôs mais de 500 canções, é pianista e professor, e se tornou um dos maiores músicos brasileiros.
Amaral Vieira nasceu em São Paulo e desde cedo tomou gosto pela música. “Influenciado” por esta irmã, ele fazia os exercícios de piano escondido em uma pequena sala de casa. Naquela época, início da década de 60, não fazia parte da cultura brasileira homem estudar piano. “Minha mãe ouvia-me tocar, mas não sabia que era eu, até que criei coragem e pedi aos meus pais para estudar piano”, revela o pianista em entrevista exclusiva ao CINFORM.
A insistência do garoto valeu à pena. Ao ouvir o primeiro exame de Amaral Vieira em um conservatório de música de São Paulo, o maestro Souza Lima sugeriu que ele deveria estudar em um lugar mais especializado. “Souza Lima fez uma série de testes comigo e disse pra minha mãe que não dava aula para crianças, mas no meu caso abriria uma exceção”, lembra Amaral. As ressalvas foram o preço da aula - quase a metade do salário que o pai do futuro pianista ganhava como servidor público, e a mesma exigência aplicada aos alunos adultos.
O aperto no orçamento para que Amaral pudesse estudar piano foi recompensado. Começou a vencer alguns concursos, inclusive ganhando um piano em um deles, e aos 12 anos fez seu primeiro concerto com orquestra no Teatro Municipal de São Paulo. Um ano depois, após se apresentar pela segunda vez no Municipal, foi procurado no camarim pelo embaixador da França que relatou estar surpreso com o talento do jovem músico. “Você tem talento, mas o Brasil é atrasado nessa parte de música erudita. Não gostaria de estudar em Paris?”, perguntou-lhe o embaixador.
A alegria no olhar de Amaral Vieira foi a resposta. O governo francês tinha um programa de bolsas para estudar no Conservatório de Paris, o problema é que nunca uma bolsa havia sido concedida a uma criança. O embaixador disse que mesmo assim iria tentar e entraria em contato. “Um dia recebo um telefonema dele me dando os parabéns, que a minha bolsa foi concedida, que eu receberia 600 francos por mês e que a viagem já estava marcada”, conta o pianista.
PARIS
Até esse momento os pais de Amaral não sabiam, e a euforia do músico foi interrompida pela negação do pai, com medo de enviar o filho para a “mal afamada cidade da perdição”. Após o fim do conflito familiar entre Brasil e França, vencido por Amaral Vieira com o argumento de que todo o investimento que teve em educação seria em vão sem a viagem, ele embarca para Paris em 1965 aos 13 anos.
“O governo Francês esqueceu que eu era criança, e quando desci do avião não tinha ninguém me esperando, entrei em um ônibus com um grupo de passageiros e acabei parando em um hotel”, relata o músico. O curso rápido de francês que fez em São Paulo ajudou-lhe a sair de uma situação vexatória. Seguindo as normas do hotel, o recepcionista se recusou em alugar o quarto para o adolescente. Sabedor do que queria pro seu futuro, e usando a insistência que lhe é peculiar, Amaral ameaçou dormir em frente ao hotel se o quarto não fosse cedido.
Conseguiu ficar no hotel, mas com a advertência de que seria por pouco tempo. Quando já estava ficando aflito por não ter assistência alguma em Paris, encontrou um amigo da família. Esse amigo era o jornalista cearense Freitas Nobre, que estava cursando doutorado na Sorbonne. O jornalista se prontificou a resolver alguns problemas, e o primeiro foi solucionado com o aluguel de um apartamento no bairro Cartier Latin. “É uma pessoa que eu sempre penso com muito carinho, foi como um pai pra mim naquele período. Todas as noites ele punha desenhos em baixo da minha porta, e escrevia algumas coisas pra me incentivar”, lembra o compositor.
Pouco antes de Amaral prestar o concurso para entrar no Conservatório Superior de Música de Paris – 3.000 candidatos por vaga –, Freitas Nobre volta ao Brasil, mas deixa encomendado um telegrama para ser enviado ao músico no dia em que o resultado fosse divulgado. “Parabéns, eu tinha a certeza de você sairia vencedor”, estava escrito no telegrama.
Após a aprovação no concurso, Amaral Vieira ascendeu como uma nota oitavada. Entrou para a Faculdade Superior de Música de Freiburg, Alemanha, na qual se formou em 1973, e conseguiu uma bolsa do Conselho Britânico para estudar na Inglaterra. Lá, estudou com Louis Kentner, músico húngaro que lhe lapidou o talento e foi discípulo de aluno de Liszt. Amaral também desenvolveu pesquisas que resgataram a obra de muitos músicos brasileiros, a exemplo do maestro Elias Lobo, mas considera que esse trabalho é apenas uma gota d’água. Confira agora o melhor deste bate-papo!
CINFORM - O que é preciso fazer para que essa gota d’água se transforme em um oceano de descobertas em prol da música brasileira?
Amaral Vieira - Mais pessoas motivadas, empenhadas nessa causa, já seria suficiente. Eu consegui o resgate de muitas partituras da música brasileira através do meu programa de rádio, ‘Laudate Dominum’, na Cultura FM de São Paulo. Solicito aos ouvintes que tenham conhecimento de partituras de compositores brasileiros que estejam guardadas, a entrar em contato com a produção. Dessa forma fomos resgatando algumas obras. Uma delas foi à do maestro paulista Elias Lobo. Após um telefonema fomos informados de que havia um sapateiro aposentado, em Itu, que tinha muitas partituras do maestro na casa dele. O sapateiro não sabia o que fazer com elas, já tinha procurado a prefeitura, mas ninguém se interessou em preservar aquele material. Quando cheguei à casa do sapateiro Eliseu, encontrei dentro de um baú centenas de partituras de Elias Lobo, que era contemporâneo de Carlos Gomes. As partituras antes ficavam dentro de um armário, no local usado pela banda da cidade para ensaiar. Os músicos, acredito eu que não por maldade, mas para ficarem com uma recordação daquele papel bonito, encorpado, arrancavam páginas a cada ensaio. O sapateiro fez uma enorme contribuição à musicologia brasileira. Aqui no Brasil não é tudo que precisa ser feito do zero não, teve muita gente corajosa no passado que já fez muita coisa boa. Só precisa que esse trabalho seja retomado.
CINFORM - Pra compor é preciso ter talento, ou com muito esforço e bons professores pode-se chegar lá?
AV - Sem o talento nada serve. Ter uma boa idéia, qualquer um pode ter. Mas o que se faz com a boa idéia, saber desenvolvê-la, dar-lhe um corpo, uma coerência de começo, meio e fim. Essa é a parte que se aprende. Mas se a pessoa não for vocacionada para o ato da criação de nada adianta. Stravisnki dizia que a um modo de saber se uma pessoa tem ou não vocação pra música. É como se fossemos tirar água de um determinado lugar, se secar é porque era apenas um depósito de água, se a água continuar brotando é porque estamos diante de uma nascente.
CINFORM - Qual a sua fonte de inspiração?
AV - O humanismo é o que me inspira. O dia em que isso não estiver mais presente em minha vida, acho que perderei a minha função, a minha motivação. Não procuro auto-engrandecimento com minha arte, se o aspecto humanístico não estivesse presente, nunca conseguiria tocar o coração das pessoas. Se através da minha obra faço com que as pessoas reafirmem a sua crença no ser humano, tenho a minha recompensa.
CINFORM – E sobre a influência do filósofo budista Daisaku Ikeda?
AV - O professor Ikeda é um exemplo de ser humano que dedicou toda a sua vida em prol da paz, cultura e educação pelo mundo. É uma fonte de inspiração para mim, e para milhões de pessoas. Fiz algumas obras baseadas em seus poemas, inclusive a ‘Canção da Juventude’, que executei no Teatro Tobias Barreto no último dia 16. Em um dos nossos diálogos, conversamos sobre o homem e as suas criações. Tudo que os grandes homens da história produziram, criaram, foi para toda a humanidade e para todas as gerações. Por maiores que sejam as dificuldades encontradas no dia-a-dia, o ser humano não pode se achar miserável, pois é o herdeiro de todas as grandes obras da Beethoven, Santos Dumont e Da Vinci, e de tudo que é grandioso que o ser humano foi capaz de fazer.
CINFORM - Alguns músicos fazem certa confusão quando definem música contemporânea. Como o senhor a define?
AV - Tudo que é feito no nosso tempo é música contemporânea. A confusão começou da metade do século 20 pra cá, e parece que está havendo certa resistência em quebrar esse paradigma de achar que contemporâneo é vanguarda. A vanguarda é uma das vertentes do contemporâneo.
CINFORM – Então onde está o equívoco?
AV - Um mau entendimento do nosso tempo é achar que toda música é apenas uma forma de entretenimento. Algumas até que podem ser, feitas apenas pro consumo. Muitas vezes por falta de cultura, de consciência, as pessoas acabam elegendo aquele tipo de música mais grosseira. Existem estudos que revelam que quanto mais primitiva uma cultura, mais ela valoriza a parte rítmica. Quando escutamos apresentações que tem essa parte rítmica muito forte, com músicas só cerebrais, o impacto vem sempre na barriga e não no coração.
CINFORM – E como as pessoas deveriam agir?
AV - Tem que haver espaço para todo tipo de manifestação, mas as pessoas precisam usar cada vez mais o discernimento, e o direito de dizer: “eu não gosto”. Quando a música é nutritiva ela alimenta a alma da pessoa, mas a parte estética não deve ser imposta por quem quer que seja. Acredito que, num futuro não muito distante, as pessoas serão mais criteriosas em relação à música. É como o alimento, se me oferecerem um rato podre pra eu comer num prato eu recusarei.